quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Margem do Tejo ... ou uma caminhada literária...

Apesar de maioritariamente já percorrido, um desafio para uma Grande Rota na margem do Tejo é sempre tentador. Dinamizado por um "mano" e na companhia de outro ... é duplamente tentador.
Bobadela, 25.01.2017 ... 6h58
O ponto de encontro era na praia dos pescadores da Póvoa de Santa Iria, para dali seguir o mais possível junto ao Tejo. Mas, à semelhança da "aventura insana" de Novembro de 2015 - quando fiz da Bobadela a Santarém em menos de 14 horas - resolvi partir ... da porta de casa 😊
Apesar da manhã bastante fria e de um denso nevoeiro ... às sete horas já estava a avançar rumo a S. João da Talha, Pirescoxe, Santa Iria...

No Aqueduto do Alviela, junto a Pirescoxe
Há universos numa gota de água... (junto à Solvay, Póvoa de Santa Iria)
Apenas um curto troço de EN 10 junto a Santa Iria, e depois junto à linha do comboio, pelo viaduto de acesso à Solvay, a Rua da República e a Estação CP da Póvoa. E antes das oito e meia, com quase 8 km percorridos, estava no início do Trilho do Tejo, junto à antiga aldeia dos Avieiros da Póvoa e da respectiva Associação. Pouco mais à frente, na antiga praia dos pescadores ... restava-me aguardar pelos "manos" e pelos restantes participantes, que chegaram por volta da hora marcada. O objectivo inicial era seguirmos até ao Carregado, mas o "chefe" indicou logo que esta era uma jornada ao sabor da respectiva evolução, a acompanhar o Tejo ... e as memórias dos "Avieiros".


Desde sempre o rio Tejo atraiu pescadores vindos de longe. Com a chegada do século XX, Vieira de Leiria tornou-se protagonista de uma das mais singulares migrações internas que Portugal conheceu: a dos "Avieiros". Durante décadas, esta gente dividia a sua vida entre o Verão em Vieira e o Inverno no Tejo, mas chegou o dia em que deixaram de regressar durante o Verão, ficando para sempre ligados à história do rio. Alves Redol retratou a vida quotidiana daqueles nómadas de um rio-vida, ao qual estavam sujeitos de forma irremediável, no infortúnio ou na bem-aventurança.

Aldeia avieira da Póvoa: memórias perdidas no tempo, que o Tempo não deixa esquecer
Mas, na esteira dos Avieiros do Tejo ... nós estávamos também no Caminho de Fátima / Santiago. Quando, em Julho de 2013 conheci o Parque Ribeirinho da Póvoa, então recém inaugurado, estava ainda longe de saber que, apenas um ano depois ... os Caminhos de Santiago iam entrar no Caminho da minha Vida.
No Caminho... (Foto: J. M. Messias)
Os caminhos do Parque da Póvoa fazem parte do Caminho do Tejo, proveniente de Lisboa e da várzea do Trancão.

Pouco depois das 11 horas estávamos no Museu do Ar, em Alverca
Pouco depois de Alverca, uma ruralidade em contraste com as indústrias envolventes
Após uma breve pausa em Alverca, continuámos na senda das setas azuis e amarelas, até próximo da Quinta do Cochão, uma quinta setecentista infelizmente degradada, que pertenceu à Casa do Cadaval. Ali, o Caminho de Fátima / Santiago ruma à EN 10, devido à dificuldade de transposição de algumas valas e à existência de algumas fábricas abandonadas.

Quinta do Cochão, Alverca
Junto à Quinta do Cochão deixámos provisoriamente o Caminho. O nosso "guia" conhecia por onde passar ... até porque rumávamos agora à Praia das Maçãs, uma antiga praia fluvial, no Tejo, também conhecida por Praia dos Tesos, entre Alverca e o Sobralinho. Frequentada ainda nos anos 50 e 60 do século passado por operários e agricultores que não tinham posses para se deslocarem para outras praias mais "célebres" - daí o topónimo "dos tesos" - nela chegaram a ser montadas barracas de praia e havia até quem vendesse tremoços. Presentemente, fala-se na sua eventual recuperação ("O Mirante", 2009), o que seria não só uma mais valia para as populações como também um impulso para que o Caminho do Tejo pudesse finalmente unir a Póvoa a Vila Franca de Xira.

A caminho e na Praia das Maçãs (Praia dos Tesos). Já passava do meio dia, mas o nevoeiro persistia.
À Praia das Maçãs seguiram-se as ruínas das velhas fábricas de aproveitamento de madeiras e de moagens. As valas que conduzem pequenas linhas de água para o Tejo foram ultrapassadas por pontões improvisados ... e nem sempre muito estáveis. Mas à uma hora estávamos em terreno seguro.

Transpondo valas à beira-Tejo, entre a Praia dos Tesos e o Sobralinho
Paredes que viram passar vidas, famílias, labuta
A partir do Sobralinho, o objectivo seguinte era a histórica Coluna de Hércules, sobranceira a Alhandra. Meio a corta mato, a subida não foi propriamente fácil, mas à uma e meia estávamos a almoçar, sob a protecção da clássica figura grega e com a bela panorâmica sobre Alhandra e o Tejo. Datada do final do século XIX, o monumento comemora a vitória das tropas anglo-lusas sobre os exércitos napoleónicos. Hércules simboliza a resistência dos exércitos aliados face ao invasor.


Subida à Serra de S. Lourenço e à Coluna de Hércules


Panorâmica sobre Alhandra e o Tejo, com
a Ponte de Vila Franca ao fundo

Uma vez almoçados, descemos a Alhandra, que atravessámos, e de novo à margem do Tejo. para percorrer a sempre bela zona ribeirinha entre aquela vila e Vila Franca de Xira.


Memória do Dr. Sousa Martins, natural de Alhandra
e respectiva Casa Museu, na zona ribeirinha
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Percorrer estas margens é recordar José Tomás de Sousa Martins, natural de Alhandra, mas também Alves Redol, mais uma vez ... e Soeiro Pereira Gomes e os seus "Esteiros" ... "minúsculos canais, como dedos de mão espalmada, abertos na margem do Tejo. Dedos das mãos avaras dos telhais que roubam nateiro às águas e vigores à malta. Mãos de lama que só o rio afaga".

Alhandra: monumento a Soeiro Pereira Gomes e a todos os “filhos dos homens que nunca foram meninos
Por trás, ao fundo, a Igreja de S. João Baptista
Uma garça viaja à boleia de um banco de jacintos
Passava já das três e meia quando iniciámos o passeio ribeirinho de Alhandra a Vila Franca. Um passeio onde todos os bancos são ilustrados por belos grafítis ... mas onde um tem um significado muito especial...

(Foto: João Brito)
Dedico esta foto a todos os peregrinos. Mas dedico-a especialmente e
dedico o que sinto cada vez que aqui passo aos que comigo já
partilharam as sensações e as emoções de um Caminho de Santiago!
Já à entrada de Vila Franca, Álvaro Guerra recorda-nos que "ao futuro entregarei sempre o melhor do meu passado" ... e no Cais da Jorna revivemos a vida dos trabalhadores rurais das lezírias que, ao longo da primeira metade do sec. XX, ali se juntavam às segundas feiras a fim de contratarem trabalho por uma semana - os "jornaleiros" - junto dos proprietários rurais ou seus capatazes - os "manajeiros". Outros tempos ... outras lutas ... outras gentes...

Vila Franca de Xira: monumento de homenagem ao Cais da Jorna
Às quatro e meia da tarde estávamos no Jardim Constantino Palha, entre o rio e a linha férrea. Era cedo, mas era tarde para prosseguir; havia que regressar. Pelo lado do autor destas linhas, com a "etapa" matinal até à Póvoa, tinha palmilhado quase 28 km ... os restantes seis elementos cerca de 20.


Um adeus a Vila Franca ... com os
olhos em Alves Redol e nos Avieiros...
"Um rio vive, respira, trabalha, constrói e destrói. Também os homens. Mas os homens amam e apaixonam-se. Por belas coisas, às vezes; por coisas mesquinhas, outras tantas."
(Alves Redol, "Avieiros")
Estação CP de Vila Franca de Xira, 16h50
E o regresso foi de comboio. Em menos de meia hora ... seis "intérpretes" desta caminhada literária saíram na estação da Póvoa. Outro ... saiu na Bobadela. E todos trazíamos mais umas belas memórias para guardar; as memórias da margem do Tejo, das suas gentes, da sua história, da sua luta. Mas também da paixão que o nosso "guia" transmitia a cada esquina do caminho ... ou do Caminho!
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2 comentários:

Paula Francisco disse...

Já vi que A caminhada foi bonita mas a descrição que fazes ainda a torna mais bela. Beijinhos

Raul Fernando Gomes Branco disse...

Tudo -"mas tudo" muito interessante, descrito com muita sabedoria.Gostei!