sábado, 17 de setembro de 2016

Bobadela - Santa Cruz: desafio k100 non stop...
100 km ... testando os limites...

Como escrevi quando da ligação da Malcata à Gardunha, nunca tive ambições competitivas, ou recordistas ... mas as "aventuras" dos últimos anos têm-me criado uma crescente vontade de testar, de certo modo, os meus limites e capacidades. O meu record pessoal de distância percorrida num dia estava em 62 km, quando em Novembro de 2015, quase por acaso ... fui da Bobadela a Santarém em 14 horas, percorrendo 72 km a uma média, em movimento, de 5,5 km/h. Nestas lucubrações ... nasceu no meu imaginário um desafio: se fiz 72 km em 14 horas (aliás em tempo de andamento nem chegou) ... se nesse dia senti que faria mais ... porque não tentar fazer os 100 km num dia? E, de preferência ... em 20 a 21 horas?... Loucura? Insanidade? Talvez não! Eu chamei-lhe desafio pessoal, teste de resistência, sem obrigação de nada ... e muito menos de provar alguma coisa a quem quer que seja, inclusive a mim próprio!

Santa Cruz, vista do alto da Cruz de Santa Helena. Chegariam as minhas pernas aqui, ao fim de 100 longos km?
O percurso a escolher para um projecto destes teria de ter o mínimo desnível possível; e seria aconselhável que a porção nocturna, sendo necessariamente perto de áreas urbanas, não fosse isolada. Por percurso diferente ... o apelo de Santa Cruz claro que surgiu na génese do ideário deste desafio; mas, para ir de novo de casa a Santa Cruz perfazendo 100 km ... teria de ir por Lisboa, Oeiras, Estoril, virar então a norte e passar a leste de Sintra, rumo à Ericeira ... e a Santa Cruz!
É este o meu ideal de percursos pedestres? Claro que não! Prefiro os grandes espaços, a poesia das belas paisagens, a montanha, os vales, as águas dos rios, o verde dos campos, o cantar da Natureza. Este é ... um conceito diferente. É um desafio que lançamos a nós próprios meramente como teste. Até onde seriam as minhas sexagenárias pernas capazes de me levar?...
Bobadela, 16.09.2016, 19h50
Nascia a Lua que me iria guardar dali a umas horas…
Curiosamente, em Lisboa e arredores, o nascer da Lua cheia do dia 16 foi exactamente à mesma hora do pôr-do-Sol (19h43). Da minha janela, virada a nascente, sobre o Tejo, a recém-nascida Lua iria guardar-me dali a umas horas … num desafio em que, a poente, no dia seguinte iria ver o pôr-do-Sol! E assim ... ao primeiro segundo depois da meia noite - uma noite de Lua cheia - estava a partir de casa, na Bobadela ... rumo à "aventura" ... e a solo. Lancei o repto a vários habitués destes desafios, mas nenhum estava disponível. Só o meu "mano" Zé Manel viria ao meu encontro, mais tarde.
23h58 - A aventura estava prestes a começar!
A noite ia ser longa ... mas tencionava aproveitá-la para uma marcha o mais rápida possível; 6,87 km/h nas primeiras duas horas...! Trancão, Ponte Vasco da Gama, passadiços do Parque das Nações, toda a frente ribeirinha do Tejo, a Ponte 25 de AbrilBelém, a Marginal, tudo foi gradualmente ficando para trás. Gostava de saber o que terá passado na cabeça de alguns mirones que, alta madrugada, viam passar a minha figura, "montado" sobre os dois bastões de caminhada, circulando célere a caminho de um destino que lhes era seguramente desconhecido. Bem, alguns desses mirones, saídos dos bares das docas e outros ... não me pareciam estar em muito bom estado de lhes passar fosse o que fosse pela cabeça...

00h30 - Passeio do Sapal, com a Ponte Vasco da Gama à vista
Cais das Colunas, 02h15 ... com 15,5 km feitos...
Pouco depois das cinco da manhã estava em Oeiras, onde nasci. Levava sensivelmente uma hora e vinte minutos de avanço em relação aos timings que havia previsto. Nada mau ... principalmente porque previa que esse avanço iria fazer falta no fim. Soube mais tarde que o Mano Zé Manel queria vir ter comigo algures por aqui ... mas a mensagem que lhe prometera mandar por volta das seis horas, quando completasse 30 km ... enviei-lha eram 4h40...

Praia de Santo Amaro de Oeiras, 05h03 - 32,5 km percorridos ... e primeira breve paragem
Há Luar de Prata na Cruz da Ponta da Rana
Entretanto a Lua viajava comigo, primeiro sobre o Tejo, depois já sobre o oceano, onde espelhava um magnífico luar de prata. Na Parede, entre Carcavelos e a Praia das Avencas, a Cruz de Rana recortava-se na prata. Terá sido erigida em memória do naufrágio de duas naus vindas da Índia, entre elas a Nossa Senhora dos Mártires, em princípios do século XVII.
A caminho do Estoril, começou a nascer a claridade ténue que anunciaria um novo dia. E com 41,5 km feitos a uma média muito próxima dos 6 km/h ... antes das sete horas estava junto ao Forte Velho de São João do Estoril. A Lua deitava-se ... o Sol preparava-se para nascer, lá atrás, sobre o Tejo ...  no oriente de onde eu vinha!
O Forte Velho foi também o ponto de viragem para norte. Ia agora deixar o mar, que só voltaria a ver na Ericeira. Por Bicesse, Manique, Abrunheira, o objectivo era passar a leste da Serra de Sintra ... menos desníveis. Digamos que esse foi um troços mais monótonos desta longa jornada. Zonas muito urbanizadas, sem motivos especiais a prenderem a atenção ... até às belas vistas para a Serra de Sintra, já na zona de Mem Martins e do Lourel.

Estoril, junto ao Forte Velho, 06h57 - Eu tinha vindo atrás da Lua, que se preparava para se deitar no oceano ...
... enquanto atrás de mim, de onde tínhamos vindo eu e a Lua ... o Sol prepara-se para originar um novo dia
Três horas depois, próximo de Mem Martins: ei-la, majestosa, a Serra de Sintra, com a Pena e o Castelo dos Mouros
No Lourel entrei na EN 247 ... que me havia de acompanhar até bem depois da Ericeira. Num projecto desta dimensão, não eram possíveis alternativas que aumentariam a distância e o desnível ... e incertas. Mas o que é facto é que eu ia tudo menos sozinho! O Sebastião Antunes acompanhou-me durante quase toda a sua discografia, os Diabo na Cruz, os galegos Luar na Lubre e Fuxan os Ventos ... para além de mim próprio...! E às 11 horas estava em Vila Verde; uma providencial fonte permitiu abastecer ... e tratar de uns pés que já haviam percorrido 60,7 km em 10 horas e 57 minutos!

Vila Verde, 10h57
Terrugem, 11h21
É claro que a média geral decrescia. Mas continuava adiantado em relação ao planning. Começava a acreditar que o objectivo estava ao meu alcance: completar os 100 km entre as 19 e as 21 horas. Entretanto, para além dos contactos com a família "biológica", os contactos com o Mano Zé Manel também se sucediam. Em princípio, ele viria ao meu encontro para, talvez, os últimos 30 km.

Entre Alvarinhos e Santa Susana, 12h37 - Vale da Ribeira de Cheleiros. Ao fundo, vê-se o Convento de Mafra
Odrinhas, Alvarinhos, Santa Susana ... e um rato a roer na barriga. Estava a fazer mais pequenas paragens do que havia previsto ... mas como os tempos estavam sob controlo resolvi parar para almoçar ... na sombra de uma paragem de autocarro. Descalçar para os pés respirarem bem, almoço, lubrificação dos pés. Meia hora de paragem ... um autêntico luxo!
Pouco depois desta saborosa paragem estava no meu Km 73 ... o que queria dizer que tinha acabado de bater o meu record pessoal de distância num dia. Já só faltavam 28 km...

Rio Lisandro, próximo da Foz, 14h05
E voltei ao mar: Praia da Foz do Lisandro, 14h22
Uma vez cruzado o Lisandro ... alguém me buzina; era, claro, o Mano Zé Manel! Estacionada a viatura sobre a praia da Foz ... a partir dali éramos portanto dois! Mas, vim a saber mais tarde, ainda antes do encontro com o Zé Manel, que fui avistado por um velho colega de há mais de 40 anos, do velho Passos Manuel. Não resisto a partilhar o que me escreveu no facebook: "Íamos de carro, a caminho da Ericeira e vimos um caminheiro todo artilhado. Disse logo à minha mulher que se calhar era o Callixto"!!!

Ericeira, 14h40 ... e vão 78 km
Sobre a Praia de Ribeira de Ilhas, 15h27
Uma "loirinha" na Ericeira e mais duas em Ribamar fizeram parte do "doping" para os quilómetros que ainda faltavam. S. Lourenço, Alfação ... e saímos finalmente da EN247, pelos caminhos rurais rumo ao Porto dos Barcos e à Assenta. Pois ... a Assenta! Há mais de 17 horas e meia a andar e com 92 km nas pernas e pés ... não me tinha apercebido que a subida do Porto dos Barcos para a Assenta ia ser penosa. Curta e apenas com uns 80 metros de desnível, foi, talvez, para mim ... a parte mais penosa do dia! O Zé Manel estava, claro ... fresquinho que nem uma alface!...

Sobre o Porto dos Barcos e a Assenta, à direita ... lá em cima...!
Faltava Cambelas, a foz do Sisandro, a Praia Azul ... e o Alto da Vela. Em Cambelas, um bom chafariz permitiu uma saborosa lavagem da cara, braços e do buff, bem como o último reabastecimento de água ... mas as minhas garrafas teimavam em cair duas ou três vezes ... obrigando-me à penosa tarefa de me baixar para as apanhar...! :-)

19H00 ... Foz do Sisandro e Praia Azul à vista!
A média geral aproximava-se "perigosamente" dos 5 km/h. Mas, desde que não passasse para baixo desse valor ... os 100 km seriam atingidos dentro do timing de 20 horas. "Vamos conseguir" ... dizíamos ambos! Descemos à Foz, quando se acabou o passadiço atravessámos a Praia Azul pela areia molhada, a boa velocidade ... enquanto o Sol descia sobre o mar e pintava todo o quadro com as cores do ocaso.


Praia Azul, 19h09 - Era preciso atravessar o areal...
A Praia Azul, a subida final do Porto Escada ao Alto da Vela, foram, são, serão também ... a minha Praia, as minhas arribas! Quantas vezes, nos meus 14, 15, 17 anos, palmilhei aqueles caminhos e aquelas arribas, a pé, de bicicleta, de motorizada do velho Sr. Filipe...! Agora, quase 50 anos depois ... chegava lá no fim de uma "prova de resistência", no fim de um desafio que lancei a mim mesmo.

19h28 - Subida da Praia Azul para o Alto da Vela ... e as cores do pôr do Sol começavam a pintar o cenário final...
100 km ... numa
aura oferecida pelo Sol!
Oito minutos depois, poucos metros antes do Alto da Vela ... o conta-quilómetros do meu inseparável Orux chegava aos três dígitos! E o Sol, como que felicitando-me, mergulhava numa explosão de cor. Já tínhamos constatado que os 100 km iam ser um pouco antes de Santa Cruz ... o que não sabíamos era que o destino tinha combinado que fossem exactamente ao pôr-do-Sol, poucos metros antes de, do Alto da Vela, avistarmos o esplendor de Santa Cruz. E também não sabíamos ... que nos esperava uma recepção triunfal!...

Não é Fisterra ... mas também aqui se acaba a terra ... e onde cumpri o objectivo
Alto da Vela, 19h45 - Atingido o objectivo ... já podia olhar com calma para a "minha" Praia de Santa Cruz...
No Alto da Vela ... tínhamos "só" esta comissão de recepção... :)
E ali ... "o vento zumbia". Vários elementos da família e amigos que nos vieram receber estavam com frio. Eu ... ainda tinha o calor da longa caminhada ... e da satisfação. Mas, apesar do objectivo já cumprido ... o percurso tinha que terminar na Riba Amarela, lá em baixo ... sobre o "santuário" do Penedo do Guincho ... porque as ondas voam com o vento.


Riba Amarela, 20h05 - Agora sim, a caminhada estava no
fim ...... sobre o "santuário" do Penedo do Guincho
E assim ... o teste de resistência foi superado. Há 3 anos, quis fazer 60 anos - 60 km ... agora, pelos vistos ... já posso durar até aos 100!...
Um grande obrigado ao meu companheiro dos últimos 25,7 km; e, principalmente, pela Amizade! Um grande obrigado também à "comissão de recepção" que nos esperava no Alto da Vela; família e amigos ... provando que a família não é só a biológica...! É claro que lá, na "comissão de recepção" ... estava a minha pequena arraiana ... que já não me via há quase 20 longas horas. Finalmente, aqui ficam para terminar ...

Alguns números desta "aventura":

Distância percorrida: 101,7 km
Duração: 20h 7m (até aos 100 km: 19h 36m)   /   Tempo em andamento: 18h 21m
Paragens totais: 1h 46m (até aos 100 km: 1h 32m)
Velocidade média: 5,05 km/h   / Média em movimento: 5,54 km/h
Desnível acumulado: 1345 D+ / 1377 D-

"Consumo" de líquidos:
            - 2,0 l de água;                        /            - 1,7 l de CocaCola;
            - 1,0 l de Powerade ...            /            - e 3 "loirinhas"... :-)

Outros "consumos":
            - 2 panados de peru;              /            - pedaços de cordon bleu;
            - 2 rissóis                               /            - 1/2 sandes de queijo e paio;
            - 1 banana                             /            3 pastilhas de magnésio... :-)
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Três semanas depois, o "Badaladas" noticiou a minha "aventura"...

sábado, 10 de setembro de 2016

Trilho dos pescadores: Zambujeira - Praia de Odeceixe

A Rota Vicentina é uma grande rota pedestre, inaugurada em 2012, que cruza o Sudoeste de Portugal, totalizando 350 km. Dela faz parte o chamado Trilho dos Pescadores, que segue os caminhos usados pelos locais para acesso às praias e pesqueiros.

Zambujeira do Mar, 10.09.2016,  10:20h - Ia começar uma caminhada fabulosa
O trilho dos pescadores inclui um total de 4 etapas e 5 circuitos complementares, desde Porto Covo a Odeceixe, num total de 120 km. É um constante desafio ao contacto com a paisagem costeira e uma natureza selvagem. Foi este desafio que os "velhos" Caminheiros Gaspar Correia escolheram para primeira actividade pós interrupção estival, entre a Zambujeira do Mar e a foz da ribeira de Seixe!
Capela de Nossa Senhora do Mar e praia da Zambujeira
Depois de uma viagem madrugadora desde Lisboa, às dez horas estávamos na Zambujeira. Recordações de infância e adolescência para a minha "namorada", que ali passou dois ou três verões. E o que íamos viver seria uma fabulosa actividade, num dia soalheiro mas, inicialmente, até com um saboroso ar fresco, tão diferente do calor abrasador de dias anteriores, o que dificultaria bastante a tarefa, já que a exposição solar é quase permanente. Permanente é, também, a sucessão de belíssimas praias e enseadas, naquele que é considerado provavelmente um dos melhores trilhos costeiros do mundo. Alteirinhos, Meia Laranja, Bernosas, Lomba do Asno, Alvorião, são só alguns nomes dos primeiros autênticos quadros de sonho que se sucediam na primeira parte da nossa progressão, até à praia do Carvalhal.

Praia dos Alteirinhos
You have the freedom to be yourself, your true self, here and now, and nothing can stand in your way"
(Richard Bach, Jonathan Livingston Seagull - Fernão Capelo Gaivota)
À descoberta dos paraísos perdidos...
Um fotógrafo apanhado a fotografar uma mariola litoral... (Foto: Eduardo Baptista)
Praia do Carvalhal
Pouco depois do meio dia estávamos no Carvalhal. Já sabia bem o almocinho! E até o banho, para alguns, nas águas transparentes que estavam até bem quentes, segundo eles! E depois, para sul, sempre sul. Espigões rochosos que entram pelo mar dentro, quais cascos de navios fantasmas encalhados, cegonhas que nidificam nos rochedos sobre o mar, indiferentes à fúria das ondas que parece irão atingir os ninhos, todo um filme de paraíso se ia descortinando a cada nova curva ou subida do trilho.

E até bisontes nos
surgem no caminho...
Praia dos Machados

A fabulosa descida do Cabo Velho
No Cabo Velho (Foto: Raul Branco)
A fabulosa descida do Cabo Velho
Ninhos de cegonha
nos rochedos
Cascatas litorais: no tempo chuvoso, transformam-se em ribeiros caudalosos que se despenham falésias abaixo
Praia da Amália
Por entre túneis
de vegetação
Descida à Praia da Amália, o refúgio preferido da diva do fado
Ruínas do velho moínho de água da ribeira que desagua na Praia da Amália
"O mar não é de ninguém ... Ninguém é dono do mar ...." (Sebastião Antunes)
E assim chegamos
à Azenha do Mar
Às quatro da tarde estávamos na Azenha do Mar, que foi em tempos palco das maiores apanhas de algas moliceiras a nível nacional. Tínhamos quase 10 km percorridos; alguns já se sentiam cansados de tanto tornear esta bela costa ... mas a maior parte do grupo continuou até à foz da ribeira de Seixe, que, dividindo as praias de Baiona e de Odeceixe, separa também o Alentejo do Algarve.

Para Sul, sempre para Sul...
E, da Ponta em Branco, avistamos a fabulosa foz da Ribeira de Seixe. Do outro lado, é já Algarve.
Ribeira de Seixe
Praia de Baiona (Alentejo) e de Odeceixe (Algarve)
Poucos minutos depois das cinco estávamos à cota '0', na dupla praia de Baiona / Odeceixe. Ali acaba o Antejo e começa o Algarve. E ali acabava, também, esta nossa fabulosa caminhada pelos trilhos do SW Alentejano. A viagem de regresso a Lisboa seria abrilhantada com um espectacular pôr-do-Sol ... e com um certo e "milagroso" serviço de massagens, no autocarro, aos mais necessitados fisicamente...
Massagens on board... :)

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