domingo, 31 de maio de 2015

Em terras de Amar Ofa...

Quando da expulsão dos judeus de Espanha, pelos reis católicos, muitos vieram para Portugal, no reinado de D. João II, que os acolheu e protegeu. Um deles foi Zacuto, judeu muito rico, que escolheu Castelo Rodrigo para viver. Viúvo e de poucas falas, era no entanto exímio nos negócios.
Pouco tempo depois de ter chegado àquelas paragens, já era dono de muitas terras, comprara rebanhos e mandara construir uma casa magnífica ... mas todos os olhares se voltavam para Ofa, a sua lindíssima filha. No dia em que pela primeira vez saiu à rua foi um alvoroço; uns cumprimentavam-na, outros saudavam-na das janelas e as crianças ofereciam-lhe flores e pequenos presentes. O pior estava, no entanto, para vir, porque os rapazes da aldeia tentavam por todos os meios conseguir a atenção da linda rapariga. No entanto e porque pertenciam a religiões diferentes, os pais não viam com bons olhos aquelas tentativas de aproximação.
A fama da linda judia chegou longe e chegou aos ouvidos do fidalgo das Cinco Vilas, um rapaz da região, conhecido pela sua ousadia e pela imensa fortuna de seus pais. “Hei-de jantar com ela ainda antes do Inverno!”- apostou com os amigos! E lá foi arquitectando o seu plano, até que se aproximou do judeu e lhe propôs um negócio, que muito agradou a Zacuto. Mas não satisfeito com isso, decidiu ir mais longe e contratou uns homens que fariam um assalto ao judeu e do qual o fidalgo o salvaria. Tudo acertado com os homens, passou à acção. O plano resultou em cheio e Zacuto, muito agradecido, convida o fidalgo para sua casa. Aposta ganha!...
O que o fidalgo não esperava era que se apaixonaria à primeira vista por Ofa, e ela por ele. E passaram a encontrar-se às escondidas, pois as famílias nunca aceitariam aquele casamento. Quando no povo viam o fidalgo sair sem dizer para onde ia, murmuravam entre si: “Lá vai ele amar Ofa”.
O romance acabou por ter um final feliz: os judeus que viviam em Portugal foram obrigados a aceitar o Cristianismo - os "Cristãos novos" - e assim desapareceu o obstáculo da religião. O casamento realizou-se no Mosteiro de Santa Maria de Aguiar e os festejos duraram 3 dias e 3 noites. Nos brindes aos noivos, o povo ia gritando ... “Marofa, Marofa” ... e assim surgiu o nome da Serra de Castelo Rodrigo.

O Cristo Rei da Serra da Marofa, erigido no seu cume (977m alt.), em Julho de 1956
Mas porquê a lenda de Amar Ofa, nestas minhas "fragas e pragas"? Bem, o final da estadia em Vale de Espinho a que se refere o artigo anterior coincidia com uma actividade caminheira na Serra da Marofa ... onde nunca tinha caminhado. Organizada pelo grupo de "Montanhistas Livres" com quem ainda em Março vivi o meu carregar de baterias no "Gerês com Alma", incluindo dois dos meus "irmãos" do "Caminho da Aventura" ... não podia desperdiçar esta oportunidade de calcorrear a Marofa.
E assim, na sexta feira ao fim do dia, reunimo-nos os 11 participantes no Hostel Cidadelhe Rupestre, a nossa base de pernoita. Sem dúvida um belo investimento no turismo e no desenvolvimento da região.

29.05.2015, 20:20h - A pequena aldeia de Cidadelhe
seria a base para um fim de semana fabuloso!
Sábado esperava-nos uma caminhada circular longa: 29 km, a partir da aldeia de Penha de Águia, pelo cume da MarofaConvento de Aguiar, Castelo Rodrigo e regresso a Penha de Águia. E que bela caminhada vivemos. Apesar da Marofa não ser uma serra muito alta, o seu cume divisa-se a grande distância e, de lá, a vista alcanca terras distantes. Ao fundo, para sudeste ... lá estava o "meu" Xalmas.

Deixamos a aldeia de Penha de Águia ...
... subimos a Marofa ...
... e chegamos ao cume, junto à Capela de Nª Srª de Fátima da Marofa
Junto à Capela sobranceira ao Cristo Rei encontra-se uma placa de homenagem ao Padre José Canário Martins, grande divulgador e apaxonado pela Marofa. A ele se ficou a dever a mais alta e mais antiga estátua do Cristo Rei em território nacional, erigida em 1956.

O Cristo Rei da Marofa abençoa as terras de Figueira de Castelo Rodrigo, com a histórica aldeia ao fundo
Foto de grupo,
aos pés do Cristo Rei
Ao longe percebe-se o vale do Douro e o Penedo Durão
Da Marofa descemos a Via Sacra, passando pela gruta evocativa à aparição de Nossa Senhora de Lourdes, França. Foi aberta na rocha onde está assente a Capela de Nossa Senhora de Fátima, a 13 de Agosto de 1958 e nela se encontra a imagem de Santa Bernardette.
A descida ... fizemo-la praticamente em linha recta. O objectivo era agora o Mosteiro de Santa Maria de Aguiar, passando aos pés, a sul, da aldeia histórica de Castelo Rodrigo. Almoçámos precisamente nesse troço, junto a um pequeno tanque de água onde se refrescava tranquilamente uma simpática cobra de água ... que ganhou, no grupo, diversos simpatizantes e algumas medrosas fugitivas ... J

Descida da Marofa ... em linha recta
"Olá!" ... dizia uma simpática cobra de água...
Aos pés da aldeia histórica de Castelo Rodrigo
O Mosteiro de Santa Maria de Aguiar foi edificado no Século XII, quando uma primitiva comunidade de beneditinos ou de eremitas integrou a Ordem de Cister, na década de 1170. Não assistimos ao casamento da lendária Ofa com o fidalgo das Cinco Vilas ... mas consumava-se no Mosteiro, à nossa chegada, um casamento cheio de pompa e circunstância... J

Mosteiro de
Santa Maria de Aguiar
O calor apertava ... pelo que uma pausa no jardim do Mosteiro soube muito bem. Os trajes caminheiros contrastavam com os do casamento, pelo que seguimos para a velha aldeia amuralhada de Castelo Rodrigo ... onde se seguiu nova pausa no bar das muralhas... J

Castelo Rodrigo ... sempre bela e atraente
O regresso a Penha de Águia foi um pouco mais a norte do percurso seguido de manhã, incluindo um pequeno troço a corta mato. Cinco minutos antes das seis da tarde tínhamos 29 km percorridos.

De regresso de Castelo Rodrigo a Penha de Águia
x
Esta foi a maior caminhada depois do problema podológico que me levou à interrupção do meu último Caminho de Santiago. Este "teste" em terras de "Amar Ofa" permitiu-me contudo, felizmente ... confirmar que os pés estão já e finalmente a funcionar a 100%
O jantar foi em Figueira de Castelo Rodrigo ... e qual não é o nosso espanto quando nos encontramos, de novo ... no meio da azáfama do casamento que havíamos testemunhado em Santa Maria de Aguiar; ainda comemos ... pão de ló da boda... J

Pelo "lombo do burro" ... rumo ao Côa
Domingo a caminhada era mais curta, a partir de Cidadelhe, mas nem por isso menos dura ... pelo contrário. O objectivo era seguir o "lombo do burro", a linha de cumeada que leva de Cidadelhe à foz da Ribeira de Massueime no "meu" grande "Rio Sagrado" ... o Côa. Côa que aliás separa as terras de Pinhel das terras de Figueira de Castelo Rodrigo, ligadas pela chamada "Ponte da União", no fundo das profundas arribas que marcam o traçado do rio nestas paragens abruptas e selvagens, onde pairam os grifos. Por aqui passa, aliás, a novel Grande Rota do Vale do Côa.

31.05.2015, 8:25h - Saímos a pé de Cidadelhe, rumo ... ao Lombo do Burro
Quinta do Espinhaço
Ao longo do "lombo do burro" ...

... já se vê o Côa!
Vale da Ribeira de Massueime
A Quinta do Espinhaço encontra-se a 477 metros de altitude. Depois ... há que descer para os 150 metros junto ao Côa; 320 metros de desnível ... através de "fragas e pragas" pedregosas e de muito mato. Um carreirito de pé posto evidencia que ali passa gente ... muito de longe em longe. E lá fomos descendo ... sabendo sempre que teríamos de voltar a subir pelo mesmo trilho agreste e sinuoso; para a esquerda (ribeira) ou para a direita (Côa) ... as curvas de nível eram bem mais apertadas ainda.

No "lombo do burro"
E chegamos às águas da Ribeira de
Massueimejunto à sua foz no Rio Côa
Alguns afoitos ainda tomaram banho nas águas da ribeira ... alegadamente tépidas. Mas tínhamos de voltar para cima, tínhamos um almoço à nossa espera ... e o final deste belo fim de semana por terras da Marofa.
E a subida ... teve a sua estória...; sem que me tenha apercebido logo ... os meus inseparáveis óculos sumiram-se no meio da densa vegetação! Por momentos fechei e abri os olhos; "estarei a ver mal?", pensei, ao achar desfocado o ambiente que me rodeava. Ao levar a mão à cara ... verifiquei que os preciosos complementos dos meus olhos não estavam lá. Ia sozinho, na altura, já que tinha ficado a tirar (mais) umas fotos; tateei o chão, voltei atrás (provavelmente até lhes passei por cima) ... mas nada. Os óculos são (eram...) demasiado finos e leves para os ver fosse onde fosse, sem eles. E assim ... o regresso foi no meio de uma paisagem desfocada. Se durante a semana que passou fiz voluntariamente o "funeral" a umas botas ... no "lombo do burro" fiz inadvertidamente o "funeral" aos meus preciosos óculos...

"Adeus óculos ... eternamente deixados nestas paragens abruptas do lombo do burro,
no mato entre as águas de Massueime e do Côa..."
E o "lombo do burro" trouxe-nos de novo de regresso a Cidadelhe. O merecido almoço foi-nos servido pela "Cidadelhe Rupestre", a novel empresa de turismo rural que igualmente nos alojou. Um jovem e muito simpático casal a gerir, diversas casas recuperadas e outras a recuperar, serviços de transporte e de guia para quem os solicitar ... uma transformação de um destino que seria a desertificação num pólo dinamizador e de atracção. Sem dúvida um bom exemplo, que deveria ser seguido em tantos outros locais.
E assim se passou, sem dúvida, mais um excelente fim de semana de "aventuras", em excelente companhia. Duas caminhadas durinhas ... nas terras de "amar Ofa". O "desastre" dos óculos não denegriu em nada os momentos vividos; são as "malhas que o império tece" ... as pragas que condimentam as fragas...
O meu muito obrigado aos meus dez parceiros destes dois dias e duas noites, em especial aos que organizaram e puseram de pé a logística para que os possamos ter vivido!
Em terras de "Amar Ofa"
(álbum completo)

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Já canta o cuco, na Primavera das terras da Raia...

Quando, em Fevereiro passado, trouxe os Caminheiros Gaspar Correia às terras da Raia, a minha pequena "princesa arraiana" perdeu as caminhadas, devido à gripe que a assolou naquele início de um mês que viria a ser trágico.
Vale de Espinho20.05.2015 ... um postal ilustrado de cores, sons e cheiros...
Regressados a Vale de Espinho no passado dia 16, a Primavera tinha entretanto pintado as encostas de verde, amarelo e roxo, com as giestas a dominarem a paisagem.
Com os meus "traiçoeiros" pés recuperados a mais de 90% ... eu tinha de ir mostrar à minha princesa pelo menos parte do que, em Fevereiro, tinha percorrido com os Caminheiros. Mas antes disso ... as bredas que levam a tantos lugares mágicos, que já me conhecem e fazem parte de mim, tinham de ser mais uma vez palmilhadas, sentindo as cores, sons e cheiros destas terras que um dia adoptei e me adoptaram.

Fontes Lares, 20.05 ... o meu "santuário". Estive ali quase uma hora, recebendo a energia do barroco "sagrado"...
No dia 17 e no dia 20, dois pequenos percursos levaram-me, entre outros locais, ao meu "santuário" das Fontes Lares ... onde um dia fiz o "funeral" a umas velhas botas ... e onde hoje "enterrei" um segundo par idêntico, as velhas Meindl já referidas há um ano como tendo calcorreado quase as mesmas léguas...
Para além da história e das estórias que já tinham para contar, as ruínas da velha casa das Fontes Lares, o carvalho e o freixo seculares, o barroco "sagrado", a nascente e a pequena presa ... vão sendo agora também o "cemitério" das "minhas botas velhas, cardadas", que já palmilharam "léguas sem fim"...

20.05 - As velhas Meindl lá estavam, há mais de um ano!
27.05- E hoje ficaram acompanhadas por umas irmãs...
Nos dias 21 e 23, com a minha arraiana e o primo que todos os anos vem de França para adorar o mês das maias, transformei então as duas "etapas" da caminhada de Fevereiro em dois percursos circulares, um entre o Soito e Alfaiates (dia 21) e outro entre a Rebolosa e Vilar Maior (dia 23). Na adaptação a percursos circulares usei também, com algumas variantes, o percurso da minha "maratona" de há um ano, bem como alguns troços da GR22 - a Grande Rota das aldeias históricas; daqui resultaram duas belas jornadas, acompanhadas em diversos locais pelo canto harmonioso do cuco, juntamente com outros melodiosos cantares de uma passarada alegre, nestes dias de um Maio soalheiro, mas frio e ventoso.

No carvalhal do Seixo, entre Soito e Alfaiates, 21.05, 9:37h - Os três "aventureiros" destas duas jornadas circulares
Igreja e Castelo de Alfaiates
Alfaiates - Igreja Matriz ... ou de Santiago
Barragem de Alfaiates ... com o "meu" Xalmas ao fundo, 21.05.2015
Rio Cesarão e entrada em Aldeia da Ribeira, 23.05.2015
Vilar Maior à vista
Igreja Matriz de Vilar Maior
Ruínas da Igreja de Santa Maria do Castelo
Castelo de Vilar Maior
Dominando o vale do Cesarão, com o vale do Côa ao fundo, do alto do Castelo de Vilar Maior
O dia 23, sábado, foi o menos ventoso. No regresso de Vilar Maior até já apertava o calor. Quando saciávamos a sede no chafariz de Escabralhado, fomos abordados por um simpático filho daquela aldeia de tão curioso topónimo; "querem visitar o museu?", perguntou-nos.

Escabralhado, 23.05.2015, 14:10h - Ainda há cabras...
O Museu do simpático Joaquim Manuel Pina é um espólio de antigos objectos de lavoura e outros trabalhos rurais, que herdou do seu falecido pai. E lia-se nos olhos do nosso anfitrião o orgulho em guardar e divulgar aquelas memórias, memórias que transcendem a ligação familiar para serem verdadeiramente as memórias de um povo simples e trabalhador ... o povo raiano.

No "museu" de Escabralhado, com o seu
orgulhoso conservador, Joaquim Manuel Pina
E a caminho da Rebolosa
Do Escabralhado à Rebolosa, faltava-nos acompanhar um troço da Ribeira de Alfaiates. As sombras foram bem vindas, permitindo apreciar o voo das muitas "libelinhas" que quase bailavam sobre as águas, folhas, rochas ... e pousando até no meu dedo!


Há vida, na Ribeira de Alfaiates
Pelas três e meia da tarde estávamos a entrar de novo na Rebolosa, com 21 km feitos. As duas "etapas" da caminhada de Fevereiro estavam transformadas nos dois percursos circulares que permitiram à minha arraianazinha (e ao primo Quim) conhecer mais umas terras, aldeias e gentes da sua Raia.

23.05.2015, 15:20h - De regresso à Rebolosa
Ontem e hoje, na segunda semana desta Primavera em Vale de Espinho, nova "peregrinação" levou-me às águas do Côa, aos Urejais, à Malhada Alta ... às Fontes Lares.

26.05.2015 - A velha Ponte de Vale de Espinho, que tantas gerações já viu passar
26.05.2015 - Moinho do Rato ... onde "de repente damo-nos conta que envelhecemos, a ver envelhecer estas pedras que não envelhecem..." (Sérgio Paulo Silva)
27.05.2015 - Vale da Ribeira dos Urejais
Na encosta sul do vale da ribeira dos Urejais descobri um estranho sulco na terra, quase uma autêntica "caverna" aberta, que me era desconhecida. Mesmo próximo de casa ... estamos sempre a fazer novas descobertas...

O "rasgão misterioso", na encosta sul do vale dos Urejais
Perto da Malhada Alta, tive a sorte de ver e fotografar uma simpática raposa. Absorta nos seus pensamentos, não deu por mim até que lhe assobiei.

Não é todos os dias que se vê e fotografa uma raposa...
Geodésico da Malhada Alta (1005m alt.)
E nas Fontes Lares ... lá ficaram as minhas segundas velhas Meindl ... a contar às e a ouvir das primeiras as histórias e estórias das "aventuras" que ambas viveram nos meus pés ... por fragas e pragas...

"Descansando" primeiro no barroco "sagrado", as minhas
velhas botas lá ficaram depois, a fazer companhia às irmãs!
Adeus ... "minhas botas velhas, cardadas ...."
Adeus Fontes Lares ... até qualquer dia...