quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Pela Sierra de Francia e vale de Las Batuecas

A Serra da Penha de França faz parte do Sistema Central Ibérico. Ligada à comarca estremenha de Las Hurdes, constitui uma das zonas de maior valor histórico, geográfico e cultural da província de Salamanca.

A Serra da Peña de Francia e o seu imponente cume, onde se localiza o Santuário Mariano mais alto do Mundo
Durante mais uma estadia na "minha" Vale de Espinho, dois magníficos dias de outono convidaram-me a fazer uma escapada a solo à Serra da Peña de Francia.
Próximo de La Alberca, 29.Out.2014, 7:55h
O Sol vai nascer por trás da Serra de Béjar
Caminhar a solo não é pior nem melhor do que acompanhado ... é diferente. Nunca se está aliás sozinho. Estamos acompanhados por nós próprios, numa ligação diferente aos elementos que nos rodeiam, sentindo-os de modo diferente, vivendo-os de modo diferente. A última vez que fiz mais de um dia a solo foi em Janeiro de 2013, na Serra de Béjar e nos confins da Serra da Gata. Já tinha saudades...J. Caminhar a solo é, de certo modo, uma introspecção, uma catarse purificadora.
Parafraseando uma vez mais o meu grande amigo António Mousinho, nestas "aventuras" a solo eu sinto-me o "monge dos espaços abertos", em isolamento integral, pelos claustros das serras e dos vales...

La Alberca e a Serra da Peña de Francia ... nos Camiños de Santiago

Quarta feira, antes de o Sol nascer, estava assim próximo de La Alberca, a povoação mais emblemática da Sierra de Francia, sede do Parque Natural Las Batuecas - Sierra de Francia. Ainda com os filhos a acompanhar-nos, a única vez que por ali tinha andado foi há 20 longos anos, em Julho de 1994 ... mas de carro. A minha "missão", agora, era a descoberta dos caminhos da serra ... pelo que o carro ficou portanto na "base", junto à Casa do Parque Natural, em Alberca. A "aventura" ia começar pelo percurso do GR10, percurso de grande rota que une as terras de Béjar à Peña de Francia.

Cores de Outono na Sierra de Francia

Ú E lá está o cume da Peña de Francia Ù
A subida desde La Alberca ao cume da Peña de Francia não é propriamente fácil. Depois de cruzar o Rio Francia, sensivelmente a 1000 metros de altitude, o trilho sobe em zigzags até aos 1723 metros daquele emblemático cume, cruzando por três vezes a estrada que lhe dá acesso.

Rio Francia
É para ali que eu vou...
A subida é dura ... mas cheia de cor e imponência
A primeira descoberta desta "aventura" veio logo nesta dura subida: a Peña de Francia ... também é Caminho de Santiago! Uma variante da Vía de La Plata, ou do Caminho de Torres, passa pelo Santuário Mariano da Peña de Francia, estando actualmente muito bem sinalizado. O troço final, no cume, acompanha aliás a Via Sacra de acesso ao Santuário.
Via Sacra da Peña de Francia ... Camiño de Santiago!
Santuário Mariano no cume da Penha de Francia, 1723 metros de altitude
Curiosamente, é na Paris Medieval que encontramos a origem do Santuário. A Virgem Maria terá aparecido a um jovem estudante, de nome Simon Vela, dizendo-lhe para percorrer o mundo em busca de uma imagem sua, que estaria numa penha. Cinco anos depois, em 1434, o jovem encontrou a imagem numa gruta, no cimo de uma montanha a sul de Salamanca: uma Virgem Negra, com um menino ao colo igualmente negro, vestida com um manto branco imaculado. Resolveu então erguer aí uma pequena cabana onde entronizou a Virgem, que passou a ser adorada pelas pessoas das redondezas. Surgia assim, a 1723 metros de altitude, na Peña de Francia, o mais elevado santuário mariano do mundo!


Diversas imagens da Virgem

(à direita,

Negra da Peña de Francia

a imagem do altar mor do Santuário)
E porquê "de Francia"? Quatro séculos antes de Simon Vela, entre os repovoadores da região, reconquistada aos mouros, figurava uma colónia francesa, que ali deixou apelidos e topónimos. O nome da aldeia próxima de San Martín del Castañar é, aliás, uma homenagem a San Martin de Tours.
E o que tem a ver a Peña de Francia com a Penha de França lisboeta? Após a batalha de Alcácer-Quibir, o português António Simões, escultor de profissão e um dos prisioneiros escravizados pelos árabes, prometeu à Virgem que, caso conseguisse chegar à pátria, lhe faria sete imagens. Tal aconteceu e ele cumpriu a sua promessa: chegado a Lisboa, esculpiu as sete imagens ... mas quando chegou à sétima não sabia que invocação haveria de esculpir. Um padre jesuíta aconselhou-lhe então a imagem de Nossa Senhora da Peña de Francia, cujos milagres eram muito falados em Castela. Mais tarde, em 1597, construiu-se uma capela para essa imagem em Lisboa, no local que ficou até hoje conhecido como Penha de França. Muitos milagres atribuídos a Nossa Senhora da Penha de França são conhecidos em Lisboa.

Panorâmica do cume da Peña de Francia para sudoeste
Do cimo da Peña de Francia desci para o Paso de los Lobos, cruzando pela última vez a estrada de acesso ao cume. O Paso de los Lobos é uma divisória natural de águas, entre as bacias do Douro, a norte, e do Tejo, a sul. Dali, para sudoeste, corre o Rio Agadón, seguindo também um trilho de montanha rumo à aldeia de Monsagro. Mas eu iria regressar a Alberca por um percurso circular sobranceiro ao vale do Rio Batuecas. Pouco abaixo do Paso de los Lobos, contudo, o trilho assinalado nas cartas ... não estava lá. O pequeno troço a corta mato não foi felizmente longo, até ao estradão que depois bordeja o Arroyo de la Talla.

Vale do Arroyo de la Talla ...
... e formações xistosas
sobranceiras ao vale
Los Puertitos, entre as bacias do Arroyo de la Talla (à esquerda) e do Rio Batuecas (para lá do puerto)
A partir de Los Puertitos, em princípio seria possível contornar a cabeceira do Rio Batuecas e descer ao respectivo vale, juntando portanto os dois percursos que me propus palmilhar nestes dois dias. Mas, para regressar a Alberca, a jornada iria parar a perto de 40 quilómetros de dura caminhada de montanha. Noutra época do ano, de noites menos frias ... teria pensado eventualmente numa autonomia, com pernoita algures naquelas paragens paradisíacas.

O vale de Batuecas, visto de Los Puertitos
A partir de Los Puertitos, optei assim por seguir o mais possível a cumeada sobranceira ao vale que iria percorrer no dia seguinte, em vez da continuação no estradão virado a norte. E não me arrependi da opção tomada ... apesar de diversas vezes me ter interrogado sobre se teria ou não de voltar atrás. As imagens abaixo podem ser impressionantes ... como o foi a fabulosa travessia daquele pequeno troço de cerca de 2 km, até ao Alto de Leras ... que demorei quase hora e meia a percorrer!

O impressionante Risco Gordo, sobre o vale de Batuecas
Vestígios da antiga exploração carbonífera
Não parece? Mas foi mesmo por estes "caminhos" que eu vim, debruçado sobre o vale de Las Batuecas...!
Surpreendo as camurças...
Ao fim de hora e meia ... estou à vista da Peña Carbonera
Retomei o estradão pouco abaixo do referido Alto de Leras, com os olhos cheios da impressionante passagem que acabara de transpor. Deixando o vale de Batuecas para o dia seguinte, rumei à última penha do dia, Peña Carbonera, topónimo a assinalar a antiga actividade de extracção carbonífera.

Refúgio de Peña Carbonera ... com a Peña de Francia ao fundo
Com 22 km percorridos, regressei a Alberca maioritariamente por estradão, passando a nordeste da Peña del Huevo, assim chamada devido à sua configuração. Depois ... a vila de La Alberca mereceu bem a visita. La Alberca é um portento de arquitectura tradicional, fazendo-nos recuar no tempo, na história, nas tradições, na cultura popular.

La Alberca ... um portento
de arquitectura popular!

Para o merecido descanso entre as duas "aventuras", havia previamente reservado dormida na Casa "Las Madras", na simpática povoação de Villanueva del Conde. Escolhido essencialmente pela muito boa relação qualidade/preço, "Las Madras" revelou-se-me uma óptima base para futuras incursões. Simpatia, decoração, qualidade, bom gosto, foram características que ali encontrei ... para além de um bom jantar...J
Casa "Las Madras", Villanueva del Conde

Ao longo do fabuloso vale de Batuecas

Sem hipótese de um percurso circular, a "descoberta" do vale de Las Batuecas tinha sempre de ser feita nos dois sentidos ... embora fique no imaginário a possibilidade de ligação entre os dois percursos efectuados nestes dois dias, como referido mais acima.
Antes das nove da manhã espanholas, estava portanto a deixar "Las Madras", passando de novo por La Alberca, rumo ao Puerto del Portillo, a partir do qual iria descer sensivelmente 600 metros em altitude, para o fabuloso vale do Rio Batuecas. Do miradouro, no Puerto del Portillo, a panorâmica era soberba, no despertar de uma manhã em que os abutres pairavam sobre os montes e vales virados a sul. Pouco depois estava no vale, preparado para iniciar a segunda jornada desta primeira incursão pedestre no Parque Natural Las Batuecas - Sierra de Francia.

Panorâmica do Puerto del Portillo para sul, com os
abutres a pairarem sobre o despertar dos vales
O vale de Las Batuecas já foi descrito como uma representação do paraíso. E realmente, se existem paraísos ... ali é um deles! Do cantar das águas do rio, sempre presente, ao colorido da densa vegetação (onde me espantou a enorme quantidade de medronheiros), à imponência dos enormes paredões rochosos, que em muitos locais ladeiam o vale, ao testemunho da ocupação humana desde tempos imemoriais e materializada em pinturas rupestres ... tudo naquele vale subjuga e convida à meditação.

Ponte sobre o Rio Batuecas, à entrada do vale
Começo a ver (e a comer...J) medronheiros
ao longo de todo o vale!
Convento e Mosteiro de San José de Batuecas, ou do "Deserto Carmelitano"
As características do vale, propícias à vida retirada e eremítica, levou à construção do Convento do "Deserto Carmelitano", nos finais do séc. XVI. Destruído por um incêndio na primeira metade do séc. XIX, foi restaurado em 1950 e entregue aos Padres Carmelitas Descalços. Do trilho que percorre o vale, apenas se vêem os espessos e altos muros do Convento, que contudo dispõe de uma Hospedaria, destinada a todas as pessoas que desejem participar do ambiente contemplativo do Mosteiro.

Teixo do Convento
(Taxus baccata)
Acompanhando sempre o rio e ao longo do denso bosque, chega-se às pinturas rupestres do Canchal de Las Cabras Pintadas. Datadas de entre o Neolítico e o Calcolítico (5000-2500 a.C.), as pinturas têm um marcado conteúdo simbólico e uma tendência para a esquematização de cenas de caça e de pastoreio.


Canchal das cabras pintadas
Formações rochosas a desafiar a imaginação...
Mas é a noroeste das cabras pintadas e do Canchal de Zarzalon que a imponência do vale mais se acentua, principalmente na zona de Las Catedrales, enormes e imponentes paredões de rocha ... quase 700 metros abaixo da também imponente travessia do Risco Gordo. Medronheiros, castanheiros e azevinheiros convivem no bosque, à medida que o rio recebe as águas de ambas as margens.

Las Catedrales, onde o vale se aperta entre os paredões rochosos, de onde sai vegetação como que por milagre
Mais
medronheiro ...
Mas também
azevinheiro
Ontem andei ali por cima...
Cores do vale...
A caminho da cascata de El Chorro
Cruzado o Rio Batuecas (que nasce pouco abaixo de Los Puertitos, onde havia passado no dia anterior), continua-se a subir o vale, bordejando agora o seu afluente El Chorro, nome derivado da espectacular cascata em que o mesmo se precipita e que culmina o trilho sinalizado pelo Parque Natural. Dali para cima ... ficou-me a já referida sensação de que deve ser possível continuar para o Puerto de Monsagro e Los Puertitos, possibilitando assim caminhadas de travessia...

E aí está ela imponente: Cascata de El Chorro, objectivo final desta caminhada pelo vale de Batuecas
Perspectivas diferentes da
espectacular Cascata de El Chorro
O trilho até à cascata de El Chorro, não sendo propriamente fácil, também não oferece dificuldades especiais e não chega aos 5 km desde o início. A contemplação dos muitos paraísos dentro daquele paraíso, as muitas fotografias, o escutar os sons e admirar as cores do bosque, tudo contribuiu contudo a que tivesse levado 3 horas até lá! Para baixo ... levei 50 minutos...J!
Mesmo assim, em "velocidade de cruzeiro", deu para ver que as cores já eram outras, a iluminação não era a mesma. A Natureza nunca se repete; tudo muda.

E assim me despeço do vale encantado de Las Batuecas
Regressado aos muros do Convento e ao ponto inicial ... restava-me o regresso a Vale de Espinho, de onde me separavam pouco mais de 100 km ... e onde me esperava a minha "pequena arraiana", que umas vezes me acompanha nas "aventuras", outras vezes prefere o aconchego de um "retiro"...J!
Estes dois dias em terras do vale de Batuecas e da Sierra de Francia foram seguramente inspiradores para novas incursões. Se já antes tinha lido sobre a zona, soube agora bastante mais acerca da existência de muitos mais percursos pedestres, alguns até bem simples, naquele refúgio natural do sudoeste de Castela, paredes meias com a Extremadura e com a "minha" Sierra de Gata. No regresso, aliás, passei como sempre junto ao Xalmas ... o meu deus vetão ... o ponto mais alto do ocidente da Serra da Gata ... e de toda a zona envolvente de Vale de Espinho, de ambos os lados da raia.
A Natureza efectivamente nunca se repete; tudo muda. Algo acontece sempre em qualquer lugar, em qualquer espaço. Só abre os olhos quem está vivo e atento à Natureza que nos rodeia, à luz que nasce ou que se vai, à sombra de uma folha, ao rio que não pára...! Nada é igual a ontem ... nada será igual amanhã...
Alberca e Peña de Francia
Vale de Las Batuecas